Brasil pode liderar regulamentação da inteligência artificial

Discussões recentes acerca das fronteiras da inteligência artificial deixaram rapidamente o campo da especulação para virar realidade. O avanço da tecnologia leva à necessidade premente de governos e entidades se adiantarem nas regulamentações. O Brasil, que tem histórico positivo de propostas na área, reúne as qualidades necessárias para estar à frente do debate, abordando, por exemplo, a importância de que sistemas inteligentes contribuam para a diminuição da desigualdade social.

Entre euforia e frustrações com Chat-GPT, uma coisa é certa: ficou mais fácil comunicar que inteligência artificial (IA) é uma discussão do presente, não futurista, e que já estamos em curso para mais uma mudança da matriz econômica em escala global.

Ao mesmo tempo, o protagonismo deste tipo específico de inteligência artificial —as chamadas IAs Generativas— nubla uma fotografia mais ampla de tudo o que está em jogo. Principalmente da agenda de desenvolvimento do Brasil, bem como do importante papel geopolítico do país em meio a inúmeros fóruns multilaterais e de uma verdadeira efervescência regulatória transatlântica sobre o tema.

Em 2019, três anos antes da Open AI lançar o já citado chatbot online e ter se tornado uma das aplicações com o crescimento de base de usuários mais rápido da história, o governo brasileiro lançava consulta pública sobre a Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA).

O documento final mostrou-se demasiadamente genérico e sem traçar metas, ações concretas e perspectiva orçamentária. Em resumo, uma carta de intenções, ao invés de uma agenda programática. Pouco ou quase nada sobre como acompanhar (com indicadores) a distribuição e uso em larga escala de serviços baseados em tecnologia de inteligência artificial, bem como sobre procedimentos e técnicas de auditoria desses sistemas algorítmicos.

De lá para cá, o país ainda não desenvolveu um plano de voo bem delineado e conectado com a sua respectiva realidade socioeconômica. Citam-se dois exemplos, do Sul e do Norte Global, para contraste.

Diferentemente do Japão que aposta na criação e consolidação de um parque industrial (como fabricação de chips de IA), a Índia joga as suas fichas na fundação de uma infraestrutura de dados para a sua ambiciosa política de digitalização com foco especial em prestação de serviços. Do polêmico sistema de identificação nacional único (Aadhar) até mais recentemente à chamada Arquitetura de Empoderamento de Dados, o país empurra sua população a gerar mais dados sobre si mesma.

E, ao prever entidades e tecnologias para rastrear todos os movimentos dos dados e estruturá-los em um formato interoperável (APIs), o principal objetivo parece ser o de quebrar barreiras para novos entrantes (nacionais) que não conseguiriam treinar e desenvolver sistemas de IA por não terem acesso a um grande volume e variedade de dados para tanto.

A Índia aposta, assim, na regulação digital como um meio para o seu desenvolvimento econômico, bem como para o fortalecimento de sua posição geopolítica no cenário global.

Há, contudo, bastante ceticismo com tal arquitetura. Ainda mais, se for colocada em xeque a narrativa tecnosolucionista pela qual IA não reduzirá necessariamente assimetrias estruturais. Pelo contrário, muitas vezes amplificam e, até mesmo, podem ser convertidas em um ferramental poderoso para guinadas autoritárias.

Não é por outra razão que a proposta regulatória europeia e brasileira vedam, por exemplo, o chamado social scoring —uma nota universal atribuída a cidadãos para acesso a bens, serviços e políticas públicas.

Do outro lado do Atlântico e mais ao norte, chamaram atenção as mais de 700 páginas sobre inteligência artificial do Congresso estadunidense. Um relatório bipartidário, publicado em 2021 e coordenado pelo ex-presidente da Google Eric Schmidt, aponta para o complexo desafio de conciliar o protagonismo do Estado e a aposta no livre mercado para o desenvolvimento tecnológico.

Nessa esteira, além de rubricas orçamentárias robustas para pesquisa e desenvolvimento em IA, de partida a gestão Joe Biden e Kamala Harris nomeou uma dupla de intelectuais, Lina Khan para Federal Trade Commission e Tim Wu como conselheiro especial, com sólidas pesquisas sobre o risco da concentração econômica nas mãos de poucas empresas de tecnologia.

Lina alerta que a regulação deve acontecer já e, por consequência, não se deve subestimar o ferramental já existente, como o do direito concorrencial, a defesa do consumidor e a proteção de dados nesta encruzilhada. Caso contrário, será tarde demais não apenas para evitar catástrofes e danos causados por IA, mas também para barrar monopólios, pouco saudáveis para o florescimento desta tecnologia de forma mais responsável.

Falando em regulação, quem saiu mais uma vez na frente foi a União Europeia, que, após o consenso obtido em torno do projeto de lei no Parlamento Europeu em junho, está em vias de ter um regulamento dedicado à matéria. É notável como Bruxelas (“Brussels effects’’) influenciou modelagens regulatórias de outros países (por exemplo, Canadá) e, até mesmo de fóruns internacionais-multilaterais, como a OCDE.

Também neste ano, em maio, o Brasil passou a ter uma proposta de regulação robusta e abrangente sobre IA com a apresentação do projeto de lei 2338/23 pelo presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

Fruto de nove meses de trabalho da comissão de juristas, presidida pelo ministro do STJ Ricardo Villas Bôas Cueva, trata-se de uma regulação assimétrica a partir da qual seu peso será dinamicamente alocado de acordo com o risco em jogo.

Seria, por exemplo, contraproducente exigir as mesmas obrigações para um sistema de IA para filtragem de spam (risco baixo) daquele que automatiza processos seletivos de candidatos a emprego ou que decide autonomamente se um benefício social será concedido ou não (risco alto).

Nesse movimento pendular e dinâmico de categorização de riscos e intensificação de direitos e deveres, a proposta da comissão avança no reconhecimento de que a realidade brasileira está permeada por desigualdades e assimetrias estruturais —sendo o racismo uma característica perversa nesse contexto.

A esse respeito, além de adotar definições sobre discriminação direta e indireta, o texto tem como ponto de atenção grupos (hiper)vulneráveis tanto para a qualificação do que venha a ser um sistema de alto risco, como para o reforço de determinados direitos.

Trata-se de um importante passo na direção de um vocabulário mais afirmativo de direitos, que é tão necessário para países desiguais como o Brasil. É fundamental evitar que os sistemas inteligentes contribuam para manutenção ou mesmo ampliação da desigualdade social no país.

Para tanto, a IA não deveria ser vista como uma forma de acelerar a automação, substituindo o ser humano, mas como tecnologia apta a ampliar os potenciais do ser humano, valorizando a pessoa de carne e osso.

Uma estratégia brasileira de governança de IA não pode descuidar também da preocupação do fortalecimento democrático do país.

A desinformação no ambiente online —que já era uma ameaça à democracia no Brasil— passa a ser ainda mais grave quando percebemos que estamos globalmente caminhando para uma realidade pós-verdade, alimentada por imagens, textos, vídeos e áudios gerados realisticamente pelas tecnologias de inteligência artificial, como ChatGPT e similares.

Para enfrentar tal cenário complexo, há alguns pontos característicos da experiência brasileira que deveriam fazer parte do pacote regulatório sobre IA. É preciso aproveitar a bem-sucedida experiência multissetorial na governança da internet e trazer os vários segmentos da sociedade para essa discussão.

A construção de um consenso, mesmo que mínimo, na formulação dos eixos de governança será crucial para ter uma estabilidade regulatória que, por sua vez, é chave para criar um ambiente econômico favorável ao desenvolvimento.

Enfim, qual será a estratégia brasileira para fomentar, ao mesmo tempo, o desenvolvimento da IA e a sua boa regulação?

É a pergunta a ser urgentemente respondida. Já estamos entrando no segundo semestre de 2023 e, em setembro, o Brasil assume a presidência do G20, cujo encontro acontecerá no Rio de Janeiro em 2024.

Coincidência ou não, fará exatamente 10 anos de quando o país sediou uma das mais importantes conferências sobre internet da história, a NetMundial, que serviu de plataforma para possíveis soluções globais diante de uma sociedade e economia em transformação.

Inclusive, nesta oportunidade, foi sancionado o Marco Civil da Internet, que inspirou países do Norte (Itália e França) e do Sul Global (Quênia) em suas modelagens regulatórias. Podemos repetir o feito e, mais uma vez, sermos ambiciosos?

Já passou da hora de o Brasil mostrar a sua cara, ou só nos restará a festa pobre da IA para a qual nem sequer seremos convidados.

Essa última frase é síntese e paráfrase da conversa que os autores deste texto tiveram com o Chat-GPT, que felizmente não “alucinou” com a célebre canção do brasileiríssimo Cazuza, a partir de um preciso comando (prompt) para correlacionar coisas tão distintas. Qual será o comando (prompt) do país em meio à corrida geopolítica da IA?

Confira a matéria completa da Folha de São Paulo aqui.

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