Em uma quarta-feira nublada, na Vila Mariana, em São Paulo, um grupo de ativistas, pesquisadores e jornalistas participavam de uma oficina sobre segurança digital.
Mais precisamente, o grupo se reuniu no simbólico espaço do Centro Brasileiro de Análises e Planejamento (Cebrap) para discutir e entender melhor o funcionamento técnico da web e conhecer ferramentas que permitam uma navegação mais segura: como criar senhas mais fortes, não ser rastreado por mecanismos comerciais ou evitar que cada email tenha seu conteúdo facilmente acessado.
O encontro, organizado pela Oficina Antivigilância, Conectas, Tactical Tech, com o apoio da Rede Latino-Americana de Estudos Sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits), destacou que os dados de navegação são todos registrados e dizem muito sobre cada usuário. Quando o assunto é lidar com fontes que precisam ser protegidas e trabalhar com dados sensíveis, saber navegar de forma segura é essencial.
Ainda não há uma legislação no país que regulamente o direito de proteção aos dados pessoais dos cidadãos. O tema vem sendo discutido em muitos países e deve permanecer na pauta ao longo do ano. Por ora, o Brasil tem algumas garantias resguardadas na Lei do Marco Civil da Internet (MCI). Mas ativistas e especialistas em direitos digitais alertam que tais garantias estão ameaçadas pelo Projeto de Lei 215, de 2015, do deputado Hildo Rocha (PMDB-MA), apelidado de “PL Espião”.
O projeto nasceu com a ideia de aumentar o rigor das penas para crimes contra a honra cometidos pela internet – com foco nas redes sociais. Mas, ao longo do processo, ele foi aglutinando uma série de pontos, tramitando com mais dois projetos apresentados – PL 1547/2015 e PL 1589/2015 – e se tornou alvo de críticas. “O Marco Civil mal completou um ano e já querem alterá-lo. É um infanticídio”, analisa o advogado e pesquisador do Grupo de Políticas Públicas para o Acesso à Informação da Universidade de São Paulo (USP), Bruno Bioni.
Uma das seções mais criticadas do PL 215/2015 dizia respeito ao acesso a dados pessoais e registros de navegação. Ocorre que o provedor de acesso à internet identifica a conexão do usuário em qualquer site, registrando o horário, dia e endereço de origem.
Os provedores de serviços na internet, sejam os de email ou de conta na rede social, também fazem esse registro, inclusive do conteúdo criado. “Na Constituição, temos a questão da proteção do sigilo das comunicações. O Marco Civil reforça essa proteção e esse sigilo só pode ser quebrado por uma ordem judicial”, explica a fundadora da Coding Rights, Joana Varon, que também é coordenadora do projeto Oficina Antivigilância. O problema é que as primeiras versões do PL 215/2015 pediam o fim dessa proteção. Ou seja, qualquer autoridade competente poderia acessar dados pessoais, se assim julgasse necessário, sem ordem judicial. Essa questão mudou nas versões mais recentes do projeto, após pressão popular e campanha realizada nas redes sociais em setembro e outubro de 2015.
O PL 215 foi aprovado na Comissão de Constituição, Cidadania e Justiça da Câmara dos Deputados. “De lá deve ir para o plenário e então segue o trâmite normal legislativo (Senado e Presidência). Até lá, muita coisa pode mudar e acontecer”, explica Bioni.
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
O “PL Espião” traz outros pontos questionáveis, segundo Bruno Bioni. Um deles diz respeito aos dados cadastrais. O PL 215 tenta alargar a noção do que seriam esses dados, como qualificação pessoal, endereço e filiação, incluindo informações como telefone, CPF e conta de email.
“O PL torna obrigatório o cadastro dos usuários para a sua navegação na internet. O texto fala que os provedores terão que tomar as medidas necessárias para cumprir essas normas. O que vai acontecer na prática é que os provedores vão ter que institucionalizar um cadastro dos usuários para navegar na internet”, prevê Bioni. Para cada acesso a um site seria preciso preencher um formulário com todos esses dados para que o provedor pudesse oferecer acesso sem ordem judicial para as autoridades competentes, analisa o pesquisador.
Outra questão que também preocupa os especialistas em direito digital quanto ao PL 215 é o chamado “direito ao esquecimento”, o qual prevê a completa remoção e indisponibilização de um conteúdo, em vez de sua desindexação nos buscadores, em caso de solicitação daqueles que alegarem ter sua honra ferida ou que julguem terem sido associados a algum crime do qual tenham sido absolvidos. Neste caso, especialistas acreditam que a exclusão de informação pela via do “direito ao esquecimento” esbarra no “direito à informação”. Segundo nota divulgada no site da Oficina Antivigilância, o receio é o de que “os poderosos possam usar essa lei para apagar a história e perseguir defensores de direitos humanos”.
No artigo “Projeto de Lei 215/2015, infanticídio aos recém-nascidos direitos digitais no Brasil”, publicado no site Digital Rights, Latin America and The Caribbean, Bioni lembra que no caso de direito ao esquecimento sempre é preciso um exame casuístico a respeito da utilidade da informação para que não se estrangule o direito à informação. Ele argumenta que o PL 215/2015 atropela esse debate, uma vez que o único critério estabelecido é a existência de uma suposta informação ofensiva à honra. “Não se elenca, por exemplo, outros critérios como o valor histórico e público da informação a excepcionar a aplicação do direito ao esquecimento”.
O Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI) também se posicionou contrário ao PL 215. De acordo com o professor da Escola de Comunicação da UFRJ, Marcos Dantas, membro do CGI, o projeto fere os princípios que norteiam o comitê e revoga pontos chaves doMCI, especialmente os que asseguram a livre expressão do pensamento na internet e o devido processo judicial em caso de supostas violações de direitos individuais ou empresariais.
“Cabe sublinhar que o MCI é, hoje, uma referência internacional em legislação regulatória da internet: está sendo estudado e tende a ser adotado, nos seus princípios, em muitos outros países. O Brasil está na vanguarda mundial nessa questão. O PL 215 é um retrocesso que nos envergonha, como brasileiros”, lamenta Dantas.
PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS
Em meio a esse cenário, a definição de uma legislação específica sobre o uso de dados pessoais é relevante. O Marco Civil, inclusive, faz referência a uma futura lei de proteção de dados pessoais.
Para Joana Varon existem, pelo menos, três projetos de proteção de dados pessoais em discussão no Brasil: um na Câmara dos Deputados, outro no Senado e outro no Ministério da Justiça. “A última versão que vi do da Câmara é muito pobre, é incorporado por agências de publicidade”, analisa Joana.
Até o momento, o texto provavelmente mais conhecido sobre a proteção de dados pessoais é o anteprojeto de lei apresentado pelo Ministério da Justiça, no último dia 20 de outubro e é fruto de cinco anos de discussão, incluindo a incorporação de sugestões pós consulta pública.
Em sua mais recente versão, o texto destaca que a lei tem como objetivos assegurar o livre desenvolvimento da personalidade, além da liberdade, intimidade e privacidade. Bruno Bioni avalia positivamente a nova versão, mas avalia que há disparidade regulatória entre o setor privado, mais avançado, e o setor estatal. “Ainda se fala de um órgão competente fiscalizador, mas não diz qual seria o arranjo dele”, explica. Teme-se que a medida regulatória punitiva possa prejudicar a liberdade de expressão ao inibir opiniões críticas. Não por outro motivo, documentos e recomendações internacionais indicam que tais atos ilícitos deveriam ser deslocados para a esfera civil”, propõe Bruno Bioni.
Sarah Schmidt
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