Parlamentares contra a liberdade de expressão

Na votação do projeto de reforma eleitoral na Câmara dos Deputados, uma emenda foi proposta durante a madrugada de 05/10 do ano passado. No jargão legislativo, era um “jabuti”, alcunha para dispositivos legais que não têm a ver com o assunto do projeto.

O texto em questão não tinha propriamente um teor eleitoral. Determinava a “suspensão” de conteúdos da internet em 24 horas logo após uma denúncia de “discurso de ódio, disseminação de informações falsas ou ofensa em desfavor de partido, coligação, candidato ou de habilitado”. Tudo isso sem a necessidade de autorização judicial.

Na justificativa, o deputado federal Áureo (SD-RJ) argumentou que, ao prever a identificação pelo provedor da identidade do autor da publicação, a emenda buscava evitar que conteúdos difamantes fossem publicados por usuários fictícios contra partidos, coligações ou candidatos. A medida, portanto, visaria diminuir a “guerra de conteúdos difamantes” disseminados por perfis fakes durante as eleições.

A notícia logo se espalhou pelas redes. Especialistas e entidades de defesa da liberdade de expressão viram no dispositivo do parlamentar uma maneira de censurar as opiniões veiculadas na Internet.

A mobilização foi tamanha que o presidente Michel Temer vetou, logo no dia seguinte, essa parte do texto da lei. Segundo o presidente, o próprio parlamentar pediu que o dispositivo fosse suprimido.

Proposições legislativas como esta se tornaram comuns no Congresso. Segundo levantamento dos advogados Diego Canabarro e Bruno Bioni, da assessoria jurídica do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR/NIC.br, foram apresentados 16 projetos, hoje em diferentes fases de tramitação na Câmara e no Senado, que podem impactar a liberdade de expressão dos brasileiros na internet ao alterar o Marco Civil da Internet.

Alargando a abrangência do conceito e somando à categoria liberdade de expressão projetos que versam sobre o bloqueio de aplicativos, como o Whatsapp, são 27 projetos no total.

“Esse é um episódio recente que mostra que, seja por imperícia, seja pela gana de controlar o discurso político, existe um cenário de disputa no Congresso”, afirma Francisco Cruz, diretor-geral do Internet Lab. “Com um sistema político em modo de autodefesa, há pressão para essa defesa acontecer de forma mais fluida e haver menos crivos para retirar um conteúdo da internet, menos critérios para disponibilizar registro de buscas”.

Segundo análise de Bioni, 11 dos 16 projetos legislativos diretamente vinculados à liberdade de expressão instituem algum tipo de punição ou criam novos mecanismos de investigação. “Tendo o histórico de que o Marco Civil da Internet (MCI) foi uma reação da sociedade civil para se pensar numa agenda para firmar garantias e direitos em vez de restringi-los, ainda vemos que a movimentação do Congresso tem um caráter muito punitivo”, afirma o advogado.

A pesquisa de Bioni também mostrou que, até novembro de 2017, os parlamentares estavam preocupados com a legislação da rede. Desde abril de 2014, quando foi promulgado o Marco Civil da Internet, foram propostos 266 projetos de lei para regular a rede.

Mais de um terço deles trata de medidas com um viés criminal. Ou seja, com caráter “punitivo”. Para efeito de comparação, foram propostas 108 alterações legais sobre internet de 1993 a 2014. As proposições vão desde projetos que mudam a Lei Geral das Telecomunicações (como o PLC 79/2016) à neutralidade da rede.

As mudanças no MCI

É nesse universo que estão englobadas 58 propostas para alterar o MCI – e elas não param de surgir. O leque é amplo: há tentativas de legislar sobre o bloqueio de aplicativos como o Whatsapp, o limite para franquia de dados, a privacidade na rede, entre outros.

“É muito significativo que uma lei aprovada em 2014, e que só foi regulamentada em 2016, tenha uma quantidade expressiva de projetos de lei que busquem modificá-la”, avalia Bioni.

Esses projetos estão diretamente ligados às discussões travadas pela sociedade civil. Por isso, os picos de proposição de novos projetos vieram em momentos críticos, como os episódios do jogo conhecido como “Baleia Azul”, ou os incidentes de bloqueio do WhatsApp em todo o país.

Em alguns temas, as propostas dos parlamentares não têm caráter punitivo. Todos os 21 projetos que tratam de limites para franquia de dados, por exemplo, foram categorizados como “não-punitivos”. Mas quando o assunto é liberdade de expressão, o Congresso parece mais disposto a encará-la como uma questão de polícia.

Estes projetos tratam, em suma, da colisão entre a liberdade de expressão e os direitos de imagem e honra  – tocando no chamado “direito ao esquecimento”. Em sua maioria, pretendem alterar a maneira como os conteúdos de postagens de redes sociais e websites devem ser removidos ou desindexados dos buscadores, além de prever punição para quem ofensores.

Falsa identidade

O senador Ciro Nogueira (PP-PI) quer expandir, por meio do PLS 101/2011, o conceito de falsa identidade do artigo 308 do Código Penal também para quem assumir ou criar “identidade ou perfil falso em redes sociais ou sítios da internet, para obter vantagem indevida, em proveito próprio ou alheio, ou para causar dano a outra pessoa”. O projeto é inspirado em uma lei aprovada pelo estado da Califórnia, nos Estados Unidos.  

Boa parte dos projetos ainda tenta modificar o artigo 19 do Marco Civil da Internet – ou passar por cima dele por meio de enxertos que o anulem. O dispositivo versa sobre a responsabilização civil de provedores por danos de conteúdo gerados por terceiros.

Ele estabelece que o provedor só será responsabilizado “se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”

Algumas das propostas se tornaram célebres. É o caso do PL 7881/2014, proposto pelo ex-deputado federal Eduardo Cunha. Ele previa a obrigatoriedade de remoção de links dos mecanismos de busca da internet que fizessem “referência a dados irrelevantes ou defasados sobre o envolvido”.

Cunha se amparou na decisão da Tribunal de Justiça da União Europeia no processo do espanhol Mario Costeja González, que se tornou o principal caso do “direito ao esquecimento” no mundo.

O espanhol pediu remoção de seus dados em resultados de buscas de informações em pesquisas feitas com seu nome, que aparecia vinculado a publicações de um jornal como devedor da seguridade social do país. Em 2014, a Corte Europeia deu ganho de causa a Costeja González, o que motivou uma enxurrada de ações no continente e no mundo.

Vigília da sociedade

Após muita polêmica e pareceres contrários à iniciativa em comissões da Câmara, o projeto de Cunha foi arquivado em julho do ano passado. Mas outras proposições apresentadas entre 2015 e 2017 seguem tramitando e tentam instituir o direito ao esquecimento direta ou indiretamente.

Para especialistas, iniciativas como estas precisam ser constantemente vigiadas pela sociedade para que não prosperem. É o caso do PL 215/2015, do deputado Hildo Rocha (PMDB-MA), que ganhou a alcunha de “PL Espião”.

O objetivo do projeto é punir os crimes contra a honra praticados nas redes sociais, e obrigar o responsável pelo site ou portal de notícias a retirar totalmente o conteúdo.

Segundo Daniel Arnaudo, Cybersecurity Fellow no International Policy Institute da Universidade de Washington, em estudo para o Instituto Igarapé, o projeto, que começou visando punir “crimes de honra” (como comentários caluniosos ou difamatórios em redes sociais), se tornou um veículo para atacar normas de privacidade do Marco Civil da Internet.

“Membros da oposição propuseram revisões no Código Civil e no MCI que exigiriam que empresas de internet armazenassem dados de usuários como nome, endereço residencial, e-mail e CPF. Além disso, autoridades policiais não precisariam mais obter ordem judicial para receber essas informações”, escreve Arnaudo. 

O projeto, ao qual estão apensadas outras quatro propostas, prevê dois novos parágrafos ao artigo 19 do Marco Civil da Internet para possibilitar, mediante ordem judicial, a remoção de conteúdo relacionado a crime do qual a pessoa tenha sido absolvida ou “relacionado a fato calunioso, difamatório ou injurioso” com multa ao provedor que não retirar o conteúdo do ar.

Em nota técnica, o Internet Lab, o Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Direito Rio (CTS FGV) e o Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação da Universidade de São Paulo (GPoPAI/USP) afirmaram se tratar de “proposta que promove uma tutela quase ilimitada do direito à honra, podendo conduzir à retirada de informações fundamentais para o debate democrático, inclusive em relação a fatos e pessoas que ocupam ou ocuparam posições que precisam estar sujeitas a amplo escrutínio público”.

“Cai na mesma questão da emenda do deputado Áureo. Se dá o nome “direito ao esquecimento” ou não, dá no mesmo. A ideia é derrubar o artigo 19 do MCI”, critica Carlos Affonso, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-Rio).

Outros dois projetos também estão na mira de especialistas: o PL 1676/2015, de autoria do deputado Veneziano Vital do Rêgo (PMDB-PB), e o PL 2712/2015, de autoria do deputado Jefferson Campos (PSD-SP).

No primeiro caso, o parlamentar busca tipificar o “ato de fotografar, filmar ou captar a voz de pessoa, sem autorização ou sem fins lícitos, prevendo qualificadoras para as diversas formas de sua divulgação” e garantir a desvinculação do nome, imagem e demais aspectos da personalidade, publicados na rede, relativos a fatos que “não possuem, ou não possuem mais”, interesse público.

Em um dos trechos, a proposta se refere a divulgações feitas por “meios de comunicação social”. Este item é considerado especialmente vago por especialistas. “Ao falar em meios de comunicação, ele expande o escopo. Não é mais só internet: entram TV, rádio e tudo mais. Todos terão de cumprir o direito ao esquecimento”, afirma Affonso.

Para ele, o PL 1676/2015 chega a ter uma característica antieconômica ao obrigar que “meios de comunicação social”, provedores e sites criem, em 90 dias, departamentos específicos para tratar do direito ao esquecimento, “com a disponibilização de endereços físicos e telefones, destinados a receber reclamações, que deverão ser registradas numericamente”.

“Isso é contrário a qualquer lógica sobre como a liberdade de expressão se manifesta. Cria um impedimento. Imagine uma startup. Vai ter um departamento de direito ao esquecimento? É um custo, além de ter um impacto severo na tutela da liberdade de expressão. Esse PL, por ser mais antigo, serviu como base para outros que serão apensados a ele”, diz o diretor do ITS-Rio.

É justamente o caso do PL 2712/2015. Ele prevê, por meio da criação de um novo inciso no MCI, a obrigação dos provedores de remover, por solicitação do interessado, referências a registros sobre sua pessoa na internet “desde que não haja interesse público atual na divulgação da informação e que a informação não se refira a fatos genuinamente históricos”.

Em ambos os casos, o relator do PL na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI), deputado Fábio Sousa (PSDB-GO) pediu arejeição dos pontos da proposta que se referissem ao “direito do esquecimento”, uma vez que o tema precisa ser mais discutido e aprofundado e poderia “ferir de morte o direito de expressão, previsto na Constituição Federal”.

Em 2016, o relatório final da CPI dos Crimes Cibernéticos sugeriu ainda a criação de oito projetos de lei para melhorar o combate à criminalidade nas redes. Em meio às discussões sobre pedofilia e revenge porn, acabaram surgindo propostas de censura e alteração do MCI não necessariamente relacionados a questões sexuais.

As propostas buscavam identificar autores de posts, determinar a retirada de conteúdos sem necessidade de ordem judicial, atribuir qualquer crime praticado online à Polícia Federal e estipular pena de dois anos para quem violasse os “termos de uso” de um site.

“O relatório final saiu completamente questionável, com indicação de pontos que não tinham sido objeto de discussão. Desde a CPI, a maré virou. A cada mês temos novos enfrentamentos e disputas para proteger o MCI”, diz Paulo Rená, fundador do Instituto Beta para Democracia na Internet e gestor do projeto de elaboração coletiva do anteprojeto de lei do MCI.

O mais recente projeto é o PL 8443/2017, do deputado Luiz Lauro Filho (PSB-SP), que também institui o “direito ao esquecimento” no Brasil. Neste texto, políticos e pessoas públicas ficaram de fora da previsão de ter acesso ao esquecimento. O projeto está na CCTCI e aguarda realização de audiência pública.

“Direito ao esquecimento” e jurisprudência

Em julho deste ano, a organização social Artigo 19, que defende a liberdade de expressão pelo mundo, fez um estudo sobre quatro propostas legislativas que tratam do “direito ao esquecimento”.

O documento é enfático ao rejeitar qualquer proposta neste sentido e esclarece que o regramento jurídico brasileiro já detém todos os instrumentos para lidar com os questionamentos levantados pelos defensores deste novo direito.

“Entendemos que a criação de um mecanismo jurídico específico para tal direito não é necessária no contexto brasileiro e poderia gerar uma série de distorções sobre o direito à privacidade e prejudicar o livre fluxo de informações”, diz o documento.

A pesquisa mostrou que as tentativas de legislar sobre um possível esquecimento de fatos passados não é exclusiva do Brasil. Em toda a América Latina, propostas semelhantes têm aparecido nos parlamentos.

Na Argentina e no Chile, cinco projetos de lei tentam diminuir as barreiras para remoção de conteúdo na web. Diferentemente do Brasil, esses países contam com leis de dados pessoais e os embates sobre direito ao esquecimento costumam acontecer dentro destes marcos legais.

Para advogados envolvidos na questão, existe dúvida sobre a fundamentação teórica para justificar o direito ao esquecimento. No caso da América Latina, diversas organizações vêm alertando para o risco de tentar se esconder informações sobre crimes cometidos durante as ditaduras que vigoraram no continente no século XX.

Em artigo, Eduardo Bertoni, diretor da Autoridade Nacional de Proteção de Dados da Argentina, defende que “se aqueles que estiveram envolvidos em violações maciças de direitos humanos pudessem solicitar, sem prejuízo do resultado da solicitação, a um buscador de informação na internet que essa informação não seja encontrada com argumentos de que é, por exemplo, extemporânea, trata-se de um insulto a nossa história”.

Na Argentina, destaca a publicação do Artigo 19, as instâncias do Poder Judiciário não estão em harmonia sobre o tema. Os principais casos judicializados no país tiveram decisões muito diferentes. “O primeiro e o segundo graus de jurisdição, no país, sentenciam de maneira mais favorável ao ‘direito esquecimento’”.

Para o advogado Eduardo Mendonça, do escritório Barroso, Fontenelles, Barcellos e Mendonça, o quadro é semelhante no Brasil. Enquanto os tribunais superiores costumam ter entendimentos favoráveis à liberdade de expressão e à aplicação do Marco Civil, nos primeiros graus ainda não há uniformidade nos entendimentos.

“Há baixa adesão do Poder Judiciário de 1ª e 2ª instância à liberdade de expressão. Decisões no Brasil sempre começam como uma procissão de fé sobre a importância da liberdade de expressão e depois vem o ‘mas’. E nele cabe tudo”, critica Mendonça. “O magistrado se sente confortável por ter feito essa ressalva teórica para depois adotar uma posição quase de editor do debate público”.

leading case do direito ao esquecimento no Brasil tramita hoje no Supremo Tribunal Federal, com repercussão geral, sob relatoria do ministro Dias Toffoli. Trata-se do recurso extraordinário 1.010.606.

A ação foi movida pela família de Aída Curi, morta em 1958 no Rio de Janeiro após uma tentativa de estupro. Eles pedem a reparação de danos em razão de o assassinato ter sido exibido em um programa da TV Globo, em 2004.  

Enquanto o Judiciário não decide sobre o caso, parlamentares aquecem o debate sobre a liberdade de expressão no país. A boa notícia é que, em meio a tantas pretensões de se limitar este direito, especialmente no afogadilho de votações na madrugada, a sociedade civil reagiu de forma incisiva para garantir que a liberdade de expressão não seja suprimida. E foi bem-sucedida – ao menos até agora.

 

LUCIANO PÁDUA – EDITOR 

Fonte: Jota

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